sexta-feira, 4 de janeiro de 2013


Uma história de natal

O mendigo e a senhora
             
Quando Cássio acordou o sol já havia nascido.  Abriu os olhos a custo, de tão sonolento que estava. Permaneceu deitado, com a cabeça apoiada sobre a mão que também estava apoiada em uma cama de papelão.
Olhando para frente viu os pés e as pernas das pessoas passarem bem perto de seu rosto. Abrindo mais os olhos procurou se concentrar e lembrar em que lugar estava. Percebeu que se encontrava deitado no chão, na calçada, em frente a um muro de tijolos. Levantou o pescoço e olhou em volta, vendo o mercado municipal já aberto e as pessoas entrando e saindo dele. Viu o fluxo de automóveis e buzinas gritando por causa da impaciência de alguns.
 Cássio sentou-se e cruzou os braços entre as pernas observando as pessoas passando e carregando sacolas. Viu também abrirem as portas rolantes de aço das lojas e o movimento imediatamente começar. Estranhou, pois sabia que normalmente as pessoas iam chegando aos poucos, mas não tão cedo. Erguendo mais o olhar, viu em um dos prédios à sua frente, uma faixa imensa, colorida e enfeitada que dizia "Feliz natal para todos!". “Ah, sim!” Pensou. "É natal!"
Ele se lembrou que era Natal. Dia de comprar e "Dar" presentes. Nada mudaria para ele, afinal, um mendigo, sem dinheiro... Comprar o quê? Porém, um pensamento lhe veio à cabeça e disse:
           - Ah, sim! É Verdade... É natal! É natal! Vamos! Vamos Cássio! Você sabe o que tem que ser feito, e tem que ser agora!
           E Cássio se levantou. Pegou as poucas coisas que carregava e as levando guardou num canto do muro sem se importar se alguém as levasse, pois não tinha nada de valor. Aquelas cobertas e roupas velhas eram tudo que possuía. De resto, deixava a vida o levar. 
           
              Desde que perdeu a memória, a alguns anos, de nada se lembra de sua história. De onde veio, se têm pai e mãe, se têm irmãos. Apenas sentia que havia nascido naquele hospital, já adulto, com a cabeça enfaixada por causa de uma forte pancada, ouvindo um dos médicos dizer que ele não tinha identidade. Sim, o médico, de tão acostumado a casos assim, pela cidade de São Paulo não deu importância ao de Cássio, afirmando
       - É apenas mais um indigente... Deixe-o melhorar e dispense... Precisamos de mais leitos para os acidentes graves" 
            E assim foi. Após melhorar partiu, e pelos caminhos que seguiu acabou caindo nesse lado obscurecido da sociedade, vivendo sem saber quem foi e do quão cheio de riquezas e futilidades havia tido e vivido.
Talvez tudo tivesse sido diferente se aquele médico agisse diferente, resolvendo ajudá-lo a recuperar sua memória ou simplesmente poderia ter sido pior se ele não conseguisse suportar a dor da realidade de sua vida... A dor da perda, da falsidade, da desonra, carregando como um fardo todo aquele ódio que nutria pelas pessoas que o enganaram, que o rejeitaram e o fizeram cair nessa vida, perdendo por completo a fé no ser humano. Não! Ele não estava preparado! Aquilo o consumiria. Certamente. Pois naquela época ele era apenas um rapaz saindo da adolescência. O fardo era muito pesado.           
Cássio levantou-se. Ele seguia uma rotina. Tanto de comer, de se banhar, lavar roupa e até mesmo de se divertir. Porém, hoje ele seguiria um caminho diferente. Carregava um Pensamento diferente.   
           Era estranho ver um mendigo ser cumprimentado pelos comerciantes com um sorriso, como um cidadão comum e respeitado. Era o que acontecia por onde quer que ele passasse. Entrou na padaria e mesmo com os seus trapos de roupas os empregados já lhe deram pão e café sem cobrar nada, deixando uma senhora que havia parado para comer surpresa e indignada. Chegou a perguntar ao dono da padaria:
           - Por que o tratam bem? É só um mendigo!
           E o dono, que olhou para Cássio... E voltando o seu olhar para a senhora inconformada, sorriu. e lhe disse:
           - Bem... É o Cássio. Ele é gente boa.
           -Mas, como, um mendigo pode ser gente boa? Olha só a sua roupa...
           -Não se preocupe. Ele fica só naquele cantinho. Não fede. Ele se cuida. Os comerciantes o ajudam até onde ele permite. Eu mesmo já ofereci roupas novas pra ele, mas ele se recusa. Preferi viver assim.
           - Um mendigo educado e com princípios... Esse é muito boa!
           - Olha... Por detrás desses trapos há uma pessoa boa e muito inteligente. Ele vive há anos aqui. Não se lembra de quem foi, mas é educado e tem estudos. Sabe falar vários idiomas e não perturba ninguém.
           - Mas, se ele é assim, então, por que não arranja um serviço? Por que não ganha o seu próprio dinheiro? É um vagabundo, isso sim!
           -Cada um tem os seus motivos senhora. Como a senhora mesma não sabia o que ele era por detrás dos trapos, a gente não sabe o que se passa dentro de sua cabeça. Mas, se quer saber... O que acho é que ele não tem motivação. Talvez por não sabe quem foi, para onde ir ou o Porquê ir... Sei lá!  
           Acabando de tomar o seu café, Cássio se levanta e olha para o dono da padaria, que acena com a cabeça a um dos funcionários que dá a Cássio vários panetones, pães e leite, colocando em um saco grande que carregava consigo.
- Mas, por que lhe dão pão, leite e panetone? É a primeira vez?
           - Todo o ano, nessa data ele vem e a gente já sabe o que dar.
           - Tá vendo!... Acostumou! Essa corja é um bando de folgados aproveitadores! Quer saber! Eu vou ficar de olho nele!
           - Não!... Não!... Não é isso... É que...
           E antes que o dono da padaria pudesse lhe explicar qualquer coisa a senhora já saía dali correndo e seguindo o mendigo que carregava o saco. Logo o viu entrar em uma loja de doces, ouvindo-o dizer ao dono:
           - Tudo bem? Pode ser?
           - Claro. Pra você não têm problema. Leve o que precisar.
           E Cássio sorri agradescendo, pegando diversos doces, jogando tudo no saco e indo embora sem pagar nada. A senhora continuava o seguindo, inconformada com a folga do mendigo e como as pessoas colaboravam para que ele não saísse dessa vida. E assim foi em toda aquela manhã.
          
           Aquela senhora, tão persistente, tinha como característica sua não mudar de ideia facilmente. Ela queria porque queria saber aonde ia dar aquilo. Até aonde Cássio iria chegar. Com o saco lotado, a senhora o viu levar para um lugar tudo aquilo que pegou dos comerciantes da rua “vinte e cinco de março” e ruas vizinhas, encontrando e pedindo para outro mendigo que guardasse o saco no lugar de sempre, dizendo "Hoje a coisa vai ser boa!" Esse comentário ela conseguiu ouvir, vendo-o pegar mais dois sacos e voltar para as lojas.
           A senhora quase arrancou os cabelos de tanta raiva. Ela via naquela expressão e postura humilde de Cássio pura falsidade e não se conformava com aquilo que via. Sempre tão impulsiva e defensora de seus direitos, sentiu que precisava fazer algo. Pensou em chamar a polícia. Mas precisava pegá-lo no ato. E mesmo ela sabendo que na sociedade qualquer coisa que dissesse iriam acreditar nela e não na palavra de um mendigo, não era de seu feitio agir assim. preferia sem mentiras, pelos meios corretos. Quando a polícia os pegasse com os sacos cheios estaria alí constatado o furto. O uso de má fé da confiança dos outros. Assim ela pensava.
           Acontece que de longe ela não conseguia ouvir o que Cássio dizia aos comerciantes. Entretanto, tinha certaza que ele mentia, jurando que estava com fome e não tinha nada. sempre o seguindo às escondidas, conseguiu ver onde ele ficava e levava as coisas. Assim, voltou para casa, carregando a fixação em Cássio.
A senhora acabou não comprando os presentes que prometera aos seus netos, de tão revoltada que ficou. Mas não sofria porque não se lembrava disso. Não preparou a ceia para a chegada dos filhos e netos e quando se lembrou, já estava tarde. Tentou recuperar o tempo, mas com a pressa errou na hora de cozinhar colocando açúcar aonde deveria ter sal e o pernil queimou no forno enquanto ela pensava como seria justo punir aquele mendigo, e quando percebeu...
           -Queimou! Taí o estrago! É claro... Tinha que ser por causa daquele mendigo idiota!  Eu sei que ele tá rindo de todo mundo... Ah! Isso não vai ficar assim! Todos têm que saber quem é ele! Inteligente... Fala vários idiomas... Rá! É um mentiroso safado! Vou colocar ele na cadeia! É isso!        
A noite chegou sem que ela percebesse. Os filhos e netos também e viram aquela bagunça. Perguntaram o que aconteceu e ela explicou o motivo da sua revolta. Eles também ficam indignados diante do que ela havia dito ter visto. Assim os filhos a ajudaram a fazer a ceia, tentando na conversa descontraída arrancar um sorriso dela. Já até conseguiam,  quando as crianças, impacientes não obedeceram aos pais e pediram:
           - Vovó... Cadê os presentes? Você prometeu... Cadê os presentes?
           Foi quando ela se lembrou de que não havia presentes. As crianças ficam tristes e com isso a senhora ficou ainda mais irritada, jogando toda a culpa no mendigo.
           - Tá vendo! Por causa dele eu perdi a cabeça e as crianças não têm presentes! Está tudo dando errado! Culpa daquele vagabundo!
           Mas, seu filho pediu que se acalmasse. A filha surgiu com a ideia de irem comprar os presentes, mesmo naquelas altas horas.  
           - Sim. Vamos! As crianças não podem ficar sem presentes!
 
           Ela aceitou rapidamente. Porém, a verdade era que a intenção dela não era sair por causa dos netos, mas porque pretendia passar em frente do lugar onde sabia estaria Cássio, finalmente matando a sua curiosidade e saber o que ele havia feito com tudo que afanou.
            E assim foram. Todos felizes dentro do carro, para o passeio. Todos, menos a senhora que diante das perguntas descontraídas deles virava o rosto, lançava um sorriso forçado. Voltando em seguida a olhar para a frente, para a estrada, com ódio nos olhos e apertando com força o volante. Estranharam o caminho que seguia. 
           "Aqui, mãe, não tem loja aberta nessas horas..." - Disse a filha.
           -È um atalho. Conheço bem o caminho. Não se mete, tá! Deixa comigo!
           E a filha fica quieta, já sabendo que a mãe, quando enfiava algo na cabeça ninguém conseguia tirar. Era o seu jeito.
Quando ela passa pela rua próxima à Estação da luz, vê Cássio com outros dois mendigos carregando várias sacolas imensas nas costas, sorrindo e gritando "É natal! É natal!" Ela sentiu que tiravam um sarro de todos e se colocando no lugar deles, parecia ser "ela" a ofendida. Mesmo sem nunca ter conversado com Cássio ou ele mesmo não saber da sua existência. Tinha apenas a certeza de que era um bando de ladrões disfarçados de mendigos. E não aguentando grita:                 
-Olha! É aquele mendigo... O safado! Carlos! Rápido! Pega o telefone e chama a polícia. Vamos denunciar o roubo enquanto eu os sigo! Devem estar se juntando a outros ladrões.
O filho ainda tentou dialogar com a mãe, lembrando-a das crianças, mas era inútil, pois ela seguia no volante com a sua fixação. O filho acaba ligando, sentindo também que a mãe podia ter razão pela versão da história que havia contado.
           Viram logo em frente os mendigos se unirem a outros e seguirem pela rua. A senhora já batia a mão no volante de raiva, dizendo:
- Agora vão fazer uma festa!" Ah! Não vão não! Não mesmo! Vou acabar com essa pouca vergonha!
Já bufava de raiva. O seu descontrole era evidente. Os filhos pediam que se acalmasse. Os netos pediam presentes e ela pedia justiça. 
           Foi quase ao mesmo tempo em que já se ouvia as sirenes das viaturas, que os mendigos acabaram por parar bem embaixo de um viaduto, dos tantos que havia no centro da cidade, onde estavam ali várias famílias de desabrigados em torno de uma fogueira de pedaços de cadeira, mesas e outras tantas, tentando se aquecer e cabisbaixos. Eram adultos e crianças. A senhora diz:
           -É ali que vão fazer uma festa! Eu sabia! Deve ter um monte de bebidas, drogas e sacanagens! Já vi tudo! Tai... Eu não disse?!
           Ela saiu do carro correndo e deixando para trás os filhos que pediam para que se acalmasse, segurando as mãos das crianças que eram arrastadas em meio à pressa de tudo aquilo. E que também não paravam de perguntar “Aonde a vovó vai comprar o presente mãe?” E vendo a viatura da polícia chegar os chama, Os policiais se aproximam da senhora que explicou tudo, apontando, acusando e exigindo justiça para que prendessem todos aqueles mendigos.
           -Alí deve ter tráfico... Ah! Se tem!!!          
Eles vão e gritam:
           - Ei! Vocês!... É a polícia! Parem tudo e mostrem o que está havendo aí! Vamos logo!
           Mas, quando os policiais  se aproximam um pouco mais, com a luz da fogueira o que estava adiante pôde  identificar um dos mendigos, dizendo:
           - Cássio! É você? O que está acontecendo?
           - O de sempre, Carlos...
E Tira um brinquedo do saco e dá para uma das crianças.
- Recolhi a doação dos comerciantes, como todo ano faço. Olha... Muita comida e brinquedos... A cada ano que passa têm mais comerciantes colaborando... É... Eu acho que está dando certo! Agora estou distribuindo aos necessitados. Não é verdade? Ao menos “um dia no ano” eles têm o direito de sorrir. Eu, com meus amigos estamos fazendo a nossa parte. Infelizmente é só isso  que podemos fazer!
           - Muito bem Cássio- disse o policial, vendo os mendigos que traziam os sacos abrirem alguns deles e distribuir a todos - Vocês estão fazendo algo muito bonito. É certo que sempre têm gente precisando mais que a gente. Olha o seu caso... Era pra estar sendo ajudado... Porém, em vez disso, procura ajudar... Parabéns rapazes! 
Diante do que viu a  senhora ficou sem saber o que dizer para o policial, para os parentes e para as crianças. Cássio ainda completou:
           -Daqui a pouco vamos também para a casa de adoção dar algum conforto a quem não tem pai nem mãe. E logo para o asilo do centro, por que, essa época é a época de resgatar valores e cidadania. Os velhinhos merecem muito o nosso respeito. Claro, o bom seria ser sempre assim, mas se não dá... Ao menos hoje!
           A senhora, arranhando a garganta pergunta a ele:
           - Por que você faz isso, se você mesmo não tem nada?
           - É. Realmente senhora.., - Disse Cássio, a notando pela primeira  vez -   É engraçado... Um mendigo presenteando outros. Chega a ser engraçado. Senhora... Eu na verdade eu não sei o porquê faço isso. O porquê mesmo!  Mas, uma coisa é certa - E Cássio vê os netos da senhora entristecidos, olhando para as crianças que ganharam os presentes, brincando e sorrindo. Cássio abriu o saco de brinquedos e disse "Venham... Cheguem mais perto...  Escolham o que vocês quiserem!... Esse é um presente nosso para vocês!” E os garotos vão sorrindo. Os pais ainda tentam impedi-los. Cássio disse:
           - Tudo bem. É exatamente isso que eu queria ver... Um sorriso verdadeiro! Por que isso nunca se apaga. Por que é verdadeiro!
           - Eu insisto em pagar... - Disse o pai do garoto - Não é justo a gente ganhar se podemos pagar...
           - Não! A felicidade é igual para todos. Para qualquer criança. Pra mim, dinheiro não vale nada! Mas esse sorriso... É puro! Veja!
           As crianças foram se misturar com as outras, brincando também. E Cássio completa:
           - Olhem! Olhem bem! As crianças brincando juntas... Sem diferença social, sem preconceito de cor... Aproveitem isso, por que, com o tempo essa aproximação e inocência irão se perder com a consciência ao perceberem pelas ideias enfiadas em suas Cabeças pelos adultos de que somos diferentes e assim devemos continuar sendo.                   
A senhora fica com os olhos cheio de lágrimas. E acaba por abraçar Cássio que diz:
           - Não, senhora, eu estou sujo, a senhora pode se...
           Ainda o abraçando ela afirma:
           -Você tem uma alma limpa! Desculpe.
           -Pelo quê?
           -Por ter julgado você mal. Pelo meu egoísmo e preconceito. Agora entendo o porquê de todos gostarem de você.
           Ele a olha, ainda meio sem compreender e sorri, dizendo-lhe:
           -Um feliz natal para todos vocês! 
          
E assim fica essa cena: Os policiais em volta, sorrindo, vendo as crianças sorrindo, comendo e brincando. Os pais felizes, pois, desabrigados e sem emprego, tudo que gostariam era de ver os seus filhos felizes e finalmente a senhora, que por pouco quase acabou perdendo o seu belo natal ao carregar sentimentos pesados e errôneos, simplesmente por ter inveja do como Cássio era respeitado por quem tinha mais que ele. O que ela gostaria de ter. Agora mostrava arrependimento, pois viu que ele estava além do seu egoísmo, mesmo com ela disfarçadamente agir pelos valores corretos. Conclusão: acabou por reconhecer e aprender que não devemos  julgar as pessoas somente pela aparência. Nem condenar sem consciência de causa. E procurar romper a barreira do preconceito, tão profundamente enraizada na alma do ser humano.
           Essa é a moral de nossa história.
 
           Já Cássio, que dizia não saber o porquê fazia aquilo, organizando, indo atrás, convencendo os comerciantes, tinha uma razão obscurecida. É que, na verdade, em sua memória, lá atrás estavam os natais em que passou com os seus pais, quando ainda era muito rico e do como foi feliz naqueles tempos, com sua mãe superprotetora do lado. Até mesmo com o seu pai, quase sempre distante, ausente, controlando as suas empresas. Entretanto, o dia de Natal era o único momento em que Bianor parava tudo e voltava ao princípio das suas conquistas e objetivos, mesmo que no dia seguinte tudo voltasse como era antes. O natal era sagrado até mesmo para o seu pai, que também se lembrava de seu passado. E era o único momento em que ele se lembrava de que tinha um filho precisando de amor e de um pai.
           Portanto, o desejo de Cássio nada mais era do que a necessidade de se ver novamente sorrindo, no rosto daquelas crianças. Era o seu passado que estava ali, muito presente.  
   
           Esse trecho foi tirado de 'memórias de Cássio", mas apenas a partir do abraço com a senhora, pois ele não saiba que ela o estava seguindo o dia todo e até mesmo sendo odiado por Ela, enquanto que ele pensava somente como seria bom ver os sorrisos das crianças e desafortunados.
“Ele não tinha muito, mas sabia, para quem não tinha nada o pouco é um tesouro.”
           De resto essa história faz parte do livro de Reinaldo Anjos chamado "Labirintos da alma" Capítulo 57, publicado em 1992 pela editora  “Edicon” em São Paulo, com a venda de quase dois mil exemplares na primeira edição e terá a sua segunda edição lançada em 2013
Autor:
Reinaldo Anjos

terça-feira, 1 de janeiro de 2013


 

Um conto de Ano Novo

Uma escolha... Um caminho!

 

É interessante como o destino nos conduz por caminhos inusitados.Basta um pequeno ato, uma rápida escolha para que o destino nos leve a grandes felicidades ou desilusões. E as nossas escolhas, dia após dia nos abrem portas para possíveis realidades em nosso futuro. Boas ou más.

Este conto se refere a escolhas e caminhos.

 

O ano estava terminando. Faltavam menos de três horas para a virada. Em sua casa Cláudio assistia TV. Porém, nessa noite ele estava sozinho, sem lugar para ir ou com quem. O vazio que sentia era tamanho que a TV passou a não ser mais suficiente. Precisava encontrar pessoas, calor humano. Ele não gostava de multidões, por isso mesmo um lugar aberto não seria bom. Teria que ser um lugar diferente do que ele já viu. Foi quando ele  se lembrou que alguém havia lhe falado de um lugar. Na época não deu muita atenção, afinal, não gostava de dançar, mas que agora lhe parecia uma boa ideia. Não para dançar, claro, mas para observar e sentir pessoas diferentes, com muito calor humano. “A sua casa” esse era o nome do lugar. Procurou noticiário de laser no jornal e leu que haveria um baile dançante e comemoração na virada de ano. E assim foi.

Quando chegou lá escolheu uma das poucas mesas que não estavam reservadas e ali se sentou. A banda começou a tocar. Músicas suaves de começo de baile. As pessoas iam chegando e ele, bebendo seu suco de laranja observava cada um que passava por ele. Pareciam alegres. Notou o jeito de entrarem. Pareciam crescer quando pisavam no salão, como se estivessem em casa. “A sua casa”.  Como se estivessem no lugar certo. Era a expectativa de uma noite feliz. 

Nesse meio tempo chegou um homem. Parecia tímido. Inseguro. Como Cláudio. Notou que perguntou ao garçom como era o funcionamento da casa. Ficou em uma mesa e pediu uma dose de whisky. E como Cláudio, também passou a observar aqueles que chegavam. Os olhares dos dois se encontraram em um momento. Eles se cumprimentaram com um discreto movimento de cabeça e logo, desviando o olhar, voltaram suas atenções às pessoas que continuavam chegando.

O tempo passou e Cláudio já havia tomado três sucos e pedido uma pizza. Enquanto que o outro estava em sua quinta doze de whisky .

 Cláudio procurava entender. O outro procurava coragem.

Pouco depois muitos já se arriscavam no salão. A maioria fazia um dois pra lá, dois para cá. Outros, mais técnicos seguiam fazendo evoluções com trançados, giros e não paravam. Havia ainda aqueles mais manhosos, fazendo gingados diversos e até picantes.

Na verdade, cada um seguia a sua viagem. E por mais diferentes que dançassem um do outro, havia algo em comum em todos eles: O sorriso! Sim. Um belo sorriso... Por errar ou acertar um passo... Por cansar depois de um ritmo intenso, mas sempre felizes. Por que sentiam que faziam parte de algo... Algo em que ele não estava se encaixando.

Foi quando Cláudio viu o outro solitário levantar-se, meio cambaleando e caminhar em direção a uma mesa com várias pessoas. Ele o viu chamar uma moça para dançar. E mesmo com o olhar surpreso dela, que se recuperando do susto sorriu e dos outros que ficaram cismados, ela aceitou.

Cláudio gostou, pois se viu fazendo isso. Com “coragem”.  Sim. Queria ter sido ele. Pensava. Porém, não se viu na situação seguinte, em que ele, sem saber dançar a abraçou forte e se esfregou nela, tentando “xavecar” e invadir o seu espaço ao mesmo tempo. Ela não gostou e tentou afastá-lo, mas ele insistia dizendo que a moça não entendia... Que havia gostado dela. Ela continuou a afastá-lo e quanto mais, mais ele a apertava tentando explicar, já com os sentidos alterados e os argumentos perdidos sem entender que apertava demais. E essa situação chamou a atenção dos amigos da moça que se levantaram e foram contra ele iniciando uma discussão e agressão que só foi contida com a intervenção dos seguranças e garçons, avisando ao homem que se continuasse teria que se retirar.

Passado esse instante tão raro bailes de dança de salão, todos voltaram a sorrir e dançar, enquanto que o moço voltou a enfiar a cara no whisky, sendo observado pelos seguranças e mal visto por todos. Até mesmo por Cláudio, lamentando-se por ter se colocado no lugar dele. Até que pouco depois pediu a conta e foi embora, cambaleante e mal-humorado, dizendo:

- Só tem gente ignorante aqui. Vá se f...

Cláudio não havia notado, mas alguém também o estava observado há um bom tempo. Era uma moça entre um grupo de amigos. Até que ele, percorrendo o olhar pelo salão,encontrou o olhar dela o encarando. Sentiu a intenção. Sentiu o flerte.  Mas ele não retribuiu, mesmo vendo que era o seu tipo.

 E aquilo realmente era estranho. Havia ali a oportunidade de se entrosar. De fazer parte de algo. Mas, não. Parecia que ele preferia manter- se como um observador. Talvez sentisse medo. Medo de invadir o espaço como o outro. Medo de estar enganado. E pior... Medo de que ela o chamasse “para dançar” e ele não soubesse o que fazer. Ele, que sempre foi tão confiante, não queria se perder e passar por um vexame.  

Está aí o problema da grande maioria dos homens “A vergonha”... O medo de errar. Por que a dança não é o seu habitat natural, tão confortável para a mulher, que desde pequena já brinca de dançar.

Entretanto, ele não poderia ter ido a outro lugar em que as pessoas não dançassem? Sim. É verdade. Mas, algo nele o impeliu a entrar nesse lugar. Misturar-se a esse ambiente. Talvez intuição. Percepção.  Não se sabe. Sabia-se apenas que o seu futuro estava ligado àquele lugar. Ele podia sentir isso e se deixou levar, mesmo com mil sussurros de ventos que tentavam induzi-lo a seguir caminhos diferentes, puxando-o para outros lugares. Enfim...

Às vezes o que a gente “mais espera” pode estar aonde a gente “menos espera”

Cláudio via a alegria de todos. O cantor anuncia que logo comemorariam a virada de ano. Todos em grupo naquele salão de baile, felizes, dançando, conversando e Cláudio se sentia triste e solitário. Bem mais que antes, quando estava em sua casa. Não pela felicidade deles, mas pela infelicidade sua.

E resolveu pedir a contar. E o garçom veio, não para lhe dar a conta, mas um recado. Uma moça, de uma das mesas o convidava a se unir ao seu grupo. Cláudio surpreso olhou na direção que o garçom apontava e a viu sorrindo para ele e fazendo um gesto de mão, chamando-o para se juntar a eles. Ele também sorriu e foi.

E assim continuou. E entre eles os flertes e olhares só aumentavam. Ela o convidou para dançar. Era tudo que ele mais temia. Porém, ele seguiu o caminho mais certo, dizendo “Eu não sei dançar”.  Ela sorriu.

-Não se preocupe. Eu te ensino. É fácil.

- Mas eu vejo tantos fazendo tanta coisa.

 - Não se importe com isso. Cada um faz o que sabe. O que importa é dançar e se sentir bem.

- E como é dançar?

-Bem... É balançar o corpo e sentir o ritmo como se fosse a batida do coração. Mas, venha, eu lhe mostro.

E foram. No salão de dança a moça que se chamava Amanda pegou em suas mãos e disse já posicionados “Siga meus pés”, olhando profundamente para ele, que dessa vez, retribuiu. Cláudio não olhou para os pés, mas para o olhar de Amanda e no passo tropeçou nela. Cláudio pediu desculpas. E ela disse, sorrindo “Olhe para os meus pés, não para mim”.

E foram seguindo no um e um. Naturalmente se aproximaram mais ainda e ele entendeu que a dança de salão foi feita para as pessoas se unirem. Para sorrirem. E disse a ela, agora mais solto:

-Vejo a maioria fazendo floreados e eu só nesse passo... Preciso aprender a dançar!

- Não está bom?

-Sim, claro, é que acho que você se divertiria mais se eu fizesse mais coisas...

Ela sorriu e lhe disse:

-Eu faço aulas numa escola de dança. Lá a gente aprende muitas coisas. Quer conhecer?

-Sim. Quero sim. Se for com você.

E ela quase deitou a cabeça no peito dele.

Nesse instante o cantor faz a contagem regressiva até chegar ao zero e gritou:

-É ano novo! É ano novo!

E todos pularam de alegria e explodiram a tampa da champagne e os dois, que se olhavam profundamente abriram um leve sorriso e os lábios foram se aproximando até o beijo acontecer em meio à gritos, fogos e abraços. E logo que a música volta eles continuaram com aquele um e um, sem se importar se estavam no ritmo certo, pois o que valia era sentir a batida forte do coração, que os levava juntos a um lugar chamado...  “Felicidade!”

E assim não se largaram mais, descobrindo belas coisas sobre a dança, sobre a vida, sobre a amizade e o amor. E já havia se passo um ano inteiro quando na mesma data festiva voltaram àquele salão de baile, para comemorarem todo aquele tempo de felicidade que não os largou desde o dia em que se conheceram. Desde que Cláudio fez a escolha certa. Voltaram aonde tudo começou... No salão de dança “A nossa casa”. E entraram abraçados e felizes, como se estivessem realmente em casa. E dessa vez, para ele, não somente como um observador, distante da felicidade, mas alguém que agora a carregava dentro de si. E entrou no salão beijando a sua mulher grávida.  E riram e comeram e ele a convidou para dançar, confiante. Próprio de quem sabia o que fazer. Amanda sorriu e no salão de dança o lembrou:

- Lembra-se quando nos conhecemos?  Fui eu que te chamei pra dançar. Você não sabia nada! O seu jeito... Era engraçado... Mas, valeu. Hoje você dança muito bem. O professor te  ensinou muito.

- Mas foi você que me ensinou a sorrir! – Disse Cláudio a olhando com carinho.

E durante o baile comemoravam e dançava com desenvoltura. Até que o cantor anunciou que logo começaria a contagem regressiva para um novo ano. Aquelas palavras o fez recordar. Lembrou-se do homem do ano passado, que foi inconveniente e não soube lidar com os seus caminhos para o futuro. Cláudio imagina como ele estaria hoje se continuasse como o viu naquele tempo e sente que talvez o seu futuro não fosse bom, por que dependia dele fazer as escolhas e cada uma delas o levaria para um bem ou para um mal. O destino estava traçado. Mas cabe a nós irmos até ele, direto ou por atalhos. Felizes ou com dores. Cláudio torcia pelo homem.  

E foi ao se lembrar disso que levou o seu olhar para aonde estava sentado no ano passado e viu em meio a tantas mesas com pessoas reunidas um rapaz. Ele estava sozinho, com um olhar entristecido, destacando-se diante da felicidade de todos. E já chamava o garçom pedindo a conta, numa situação semelhante a que tinha vivido. Cláudio resolveu parar de dançar, pedindo à esposa que esperasse um pouco e foi em sua direção antes que saísse. O cumprimentou e o convidou para juntar-se a eles. O rapaz relutou, mas Cláudio insistiu. E viu o rapaz sorrir, aceitando o convite, identificando o verdadeiro significado daquele sorriso. Pois, a reação do rapaz foi a mesma que sua e por isso mesmo sabia exatamente do que ele precisava. Do que ele queria.

E enquanto voltava em meio aos chamados da esposa que o avisava que restava apenas alguns segundos para a virada, ele ainda olha para trás e no lugar vazio em que o rapaz havia deixado, surgiu a sua imagem. Era a imagem de um Cláudio triste e distante, sentindo-se pequeno e rejeitado. Era o Cláudio de antes de fazer a sua escolha e seguir por um desses infindáveis caminhos. Essa imagem, tão viva, olhou para o Cláudio do presente e passou a sorrir e com um sinal de positivo de cabeça parecia dizer “Vá... Siga a sua nova vida... Você escolheu bem!” e foi desaparecendo por que ele já havia feito a sua escolha e aquele Cláudio não existia mais.

Claudio também sorriu, no exato instante em que os fogos explodiram e as champagne foram abertas e correu para sua mulher e amigos, levando consigo um solitário que não mais seria, pois a sua vida tinha mudado simplesmente por que alguém havia lhe dado a mão. Haveria de fazer o mesmo.  Por que, como ele, o rapaz se permitiu aceitar a mão.  

E assim começa um novo ano.

 

Fim

Autor:

Reinaldo Anjos